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Opinião

Transitoriedade e passivo do governo Bolsonaro na área ambiental

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*Carlos Bocuhy

Não poderia haver pior período para o Brasil apresentar um declínio em gestão democrática, científica, ambiental e econômica.

Iniciamos 2022. Depois de três anos de governo de Jair Bolsonaro, contabilizamos a destruição e a paralisação de meios importantes, dentro das estruturas democráticas, para manter a boa gestão no Brasil. Da área ambiental à saúde pública, contabilizamos um passivo irreparável. Não há mais simulações políticas que possam acobertar as motivações, as causas, os meios utilizados e nem esconder as consequências.

Tudo isso ocorre exatamente neste momento em que a humanidade precisa avançar diante dos desafios conjunturais do século XXI, que vão desde o início do Antropoceno às Mudanças Climáticas, assim como aos primórdios de uma possível e alienante variante digital da realidade sinalizada pelo controverso metaverso.

Não poderia haver pior período para o Brasil apresentar um declínio em gestão democrática, científica, ambiental e econômica. Freud afirmou que a transitoriedade da vida pode sinalizar caminhos preocupantes, ao considerar “que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta”.

A realidade da beleza e nosso desejo de perenidade exigem um despojamento de futuro. Faz sentido como elemento de percepção existencial para o bem-estar psicológico, mas de fato a transitoriedade da vida navega por determinantes que provocam mudanças evolutivas, que devem ser observados e alimentados, entre estes o pacto intergeracional com o futuro: a sustentabilidade ambiental.

Importante compreender que grande parte da construção civilizatória se desenvolve não de forma ininterrupta, mas com hiatos decorrentes dos movimentos das massas, que envolvem muitas vezes o silêncio de poucos diante da maioria. Segundo um estudo sobre as omissões humanas, estabelecida nos princípios da “Espiral do Silêncio” de Ellisabeth Noelle-Neumann, há uma tendência de evitar expor opiniões mediante a possibilidade de desaprovação pela maioria, uma espécie de comportamento determinado por cerceamento social majoritário, mesmo quando se trata de posições mais lúcidas e progressistas. Estas só ganhariam corpo se tiverem ressonância e aprovação pela maioria da sociedade.

O conjunto composto pela transitoriedade e os efeitos da espiral do silencio devem ser considerados em sociedades contemporâneas em processo de forte necessidade de transição cultural, como é o caso do Brasil. As transformações positivas são mais difíceis de ocorrer quando há manipulação da comunicação por segmentos com interesses específicos, com o mau uso de redes sociais em correntes orquestradas para a disseminação de fake news.

Uma estratégia nefasta ainda tenta vitimar o Brasil, visando sustentar o poder do bolsonarismo e neutralizar um legítimo e lúcido controle social. Essa máquina de comunicação social destrutiva é o que o Brasil vem experienciando com o aparelhamento de redes sociais pelo atual governo. Isso não surgiu de forma espontânea. Foi planejado e implementado por atores e interesses que estão imbricados na base governista.

Meios de manipulação de massa como este devem ser devidamente estudados, sob pena de permitirmos uma possível reedição de tal estado de coisas. Processos de ascensão mafiosa ao poder político devem ser combatidos pela sociedade. Além de provocar inversões de valores como temos assistido nos episódios antivacina, representam retrocessos conceituais em períodos como o atual, que já é, em função de aspectos conjunturais, de difícil superação.

Recentemente, José Galízia Tundizi, professor de pós-graduação em Ecologia e Recursos Naturais, escreveu: “Luta pelo poder político e econômico, depredação de padrões democráticos, ações sociais dominadas por grupos extremistas e hábitos de consumo sem mudanças efetivas comprometem os esforços efetivos para resolver o problema. O Planeta Terra continua morrendo a cada minuto, a cada hora, a cada dia”.

Constatações sobre falências ecossistêmicas encontram também ressonância no relatório AR6 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) de 2022, sacralizado por uma centena de cientistas de todo o mundo. Neste cenário desafiador é preciso analisar cuidadosamente as motivações, os determinantes e os meios de ação destrutivos praticados pelo Bolsonarismo alçado ao poder, especialmente em uma sociedade em transição como é o Brasil, que demanda processos de educação efetivos para desenvolver maior consciência crítica que o imunize de armadilhas e estratagemas destrutivos.

Já em novembro de 2018, entidades ligadas a trabalhadores rurais denunciavam os riscos da nomeação de setores mais retrógrados do agronegócio para posições-chave no governo de Bolsonaro. Culturalmente mais atrasados e na contramão dos avanços internacionais para o regramento nos aspectos ESG, essa articulação política retrógrada passou a influenciar as decisões governamentais. Seus interesses econômicos foram abraçados pelo presidente, que procedeu ao desmantelamento dos mecanismos de controle e participação social, assim como os da área ambiental brasileira.

O primeiro passo foi nomear pessoas oriundas deste grupo mais reacionário do agronegócio para o controle do Ministério do Meio Ambiente e outros departamentos correlatos. O desmantelamento atacou internamente os setores de fiscalização e a capacidade de monitoramento dos danos ambientais.

Some-se a isso o fato de Jair Bolsonaro apresentar-se como uma das viúvas da ditadura militar do século passado, pois, segundo suas inúmeras declarações, nota-se fortes traços desta formação cultural, que parece ter sido sua única e mais influente alma mater.

Sufocar econômica e politicamente o Ibama e o Inpe foi o meio de neutralização escolhido para desestruturar a área ambiental, mas com o cuidado de simulações que não permitissem caracterizar improbidade administrativa. Assim, a destruição interna e a inanição econômica dessas estruturas, construídas ao longo de décadas, passaram a ocorrer de forma sub-reptícia desde o início da gestão do Bolsonarismo.

Essa intencionalidade destrutiva usou de todo o poder discricionário possível para passar a boiada. Acobertado por uma rede orquestrada de apoio, tentou avançar ao máximo, angariando apoio do Centrão no Congresso Nacional, onde o toma-lá-dá-cá permitiu ampliar a influência nefasta do Executivo sobre o Poder Legislativo, enquanto investia sobre a Procuradoria Geral da República e o Supremo Tribunal Federal, ao colocar dentro das instituições pessoas de sua influência política.

Como força de pressão social artificial externa, seus comparsas desferiram ataques nas redes sociais e na Esplanada contra o Congresso e o Poder Judiciário, por meio de militantes arregimentados com financiamento de setores econômicos simpatizantes e beneficiados pelo governo.

A reação social brasileira ao desmonte do sistema ambiental e a intervenção nas salvaguardas normativas foram percebidas imediatamente pelos setores especializados, mas as reações da opinião pública só começaram a ocorrer, de forma expressiva, em função do surgimento das consequências, com a destruição massiva da Floresta Amazônica e posteriormente do Cerrado, para beneficiar atividades econômicas predatórias do agronegócio, da grilagem, da mineração e da extração de madeira.

Ao chegarmos em 2022, após três anos de favorecimento de interesses econômicos degradadores, os danos são palpáveis e a insurgência da criminalidade se fortalece, como demonstra a recente concentração de centenas de balsas de mineração ilegal no rio Madeira.

Mas há aspectos de saúde ambiental que também chegaram ao apogeu, como a tentativa de Bolsonaro em procrastinar a vacinação das crianças brasileiras diante da pandemia da Covid-19. Além das manobras visíveis e de intencionalidade evidente, como abrir uma oitiva pública sobre a pertinência da vacinação, o presidente tentou inferir que havia “outros interesses” na vacinação das crianças brasileiras.

Bolsonaro ultrapassou todos os limites possíveis da legalidade em sua gestão, o que aponta para a necessidade imperiosa de seu afastamento, seja por impeachment ou pelo voto. Será também necessário dimensionar a responsabilização por atos contrários à boa gestão pública, com efeitos perfeitamente dimensionáveis à saúde pública e ambiental brasileira.

As forças e interesses que sustentam e alimentam o governo de Jair Bolsonaro foram escancarados por várias reportagens de jornalismo investigativo. Não há mais apoio expressivo e as forças de manobra por fake news não são mais capazes de sustentar simulações ou mentiras.

Bolsonaro concedeu, contra o melhor interesse público, protagonismo decisório a uma verdadeira máfia de interesses que estão em sua base de apoio e articulação política. Muito recentemente, sem motivação plausível, dentro de um contexto de combate às mudanças climáticas e com o Brasil sofrendo com eventos extremos de norte a sul, Jair Bolsonaro determinou estímulo econômico, por décadas, à indústria poluente do carvão em Santa Catarina.

Quando nos referimos no Brasil ao negacionismo incorporado pelo governo, é preciso complementar a descrição dos fatos: a variante negacionista brasileira consolidou-se no mais deslavado oportunismo econômico e político.

A espiral do silêncio no Brasil foi rompida e a transitoriedade da vida precisa caminhar em processo de reparação, com a aplicação das salvaguardas que estão estabelecidas, desde 1988, na Constituição Cidadã do Brasil, que garante proteção do meio ambiente e saudável qualidade de vida para todos os brasileiros.

*Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).

Fonte: O Eco