Opinião

Lei 14.285/21: crônica de uma tragédia urbana anunciada

*Guilherme Purvin

Ao transferir para municípios a atribuição de definir a faixa de preservação de rios urbanos, o Congresso usurpou a competência dos estados.

No dia 29 de dezembro de 2021 foi sancionada a Lei 14.285, que introduz modificações drásticas tanto no Código Florestal como na Lei 6.766/79.

Cabe, inicialmente, destacar que as mais importantes garantias ecológicas para a segurança e a saúde das populações urbanas estavam até então estabelecidas no Código Florestal (antiga Lei 4771/65, revogada pela Lei 12.651/2012) e pela Lei de Uso e Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6766/79).

O Código Florestal dispunha, até há alguns dias, sobre as áreas de preservação permanente ciliares ou ripárias (das margens dos rios) tanto na zona rural como na urbana. De forma inteiramente adequada, ressalte-se, já que os rios existem e obedecem às leis da geofísica independentemente da vontade humana. Assim, haja ou não intervenção humana ao longo de um rio, as águas da chuva haverão sempre de correr em direção aos fundos de vales e, se estas áreas forem impermeabilizadas, fatalmente não haverá vazão suficiente e o entorno ficará inundado, podendo provocar desmoronamentos, o que significa, numa cidade, tragédias como desabamento de edificações e grave risco sanitário causado pelas águas servidas (p.ex., tifo).

A Lei 6.766/79, por seu turno, dispunha sobre áreas non aedificandi no entorno dessas correntes de água, porém numa extensão menor do que aquela fixada pelo Código Florestal (apenas 15 metros).

Em 29 de dezembro de 2021, a nova Lei 14.285, alterou o art. 3º, inc. XXVI da Lei 12.651/2012 e, mais flagrantemente, o art. 4º, ao qual foi introduzido um § 10 com o seguinte teor:

§ 10. Em áreas urbanas consolidadas, ouvidos os conselhos estaduais, municipais ou distrital de meio ambiente, lei municipal ou distrital poderá definir faixas marginais distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput deste artigo, com regras que estabeleçam:

I – a não ocupação de áreas com risco de desastres;

II – a observância das diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico, se houver; e

III – a previsão de que as atividades ou os empreendimentos a serem instalados nas áreas de preservação permanente urbanas devem observar os casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental fixados nesta Lei.

Ademais, à guisa de alterar uma lei que dispunha sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal, reforçou a mudança da Lei 12.651/2012 e modificou a Lei 6.766/79, ao dispor:

Art. 3º O art. 22 da Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, passa a vigorar acrescido do seguinte § 5º:

“Art. 22. ……………………………………………………………………………………………

§ 5º Os limites das áreas de preservação permanente marginais de qualquer curso d’água natural em área urbana serão determinados nos planos diretores e nas leis municipais de uso do solo, ouvidos os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente.” (NR)

Art. 4º O art. 4º da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 4º …………………………………………………………………………………………….

III-A – (omissis)

III-B – ao longo das águas correntes e dormentes, as áreas de faixas não edificáveis deverão respeitar a lei municipal ou distrital que aprovar o instrumento de planejamento territorial e que definir e regulamentar a largura das faixas marginais de cursos d´água naturais em área urbana consolidada, nos termos da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, com obrigatoriedade de reserva de uma faixa não edificável para cada trecho de margem, indicada em diagnóstico socioambiental elaborado pelo Município;

Estas alterações padecem de evidente vício de inconstitucionalidade, como passarei a demonstrar.

A nova lei, não contente em retirar a proteção das APPs ciliares urbanas prevista no Código Florestal, também reduziu a nada a já tíbia proteção que era dada pela Lei 6.766/79.

Esta mudança legislativa constituiu novo episódio de reação do Poder Legislativo às decisões do Poder Judiciário que vinham em defesa do meio ambiente. Já fora assim no julgamento da inconstitucionalidade de lei cearense sobre a vaquejada, que resultou no afastamento da regra constitucional que proibia qualquer tratamento cruel à fauna.

Tal reação antidemocrática a uma jurisprudência consentânea com o art. 225, caput, da Constituição Federal, foi imposta pela bancada ruralista que, em sua versão urbana, é também bancada da especulação imobiliária. Isto porque, conforme tese fixada no Tema Repetitivo 1010,

Na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.

Vamos partir da premissa de que a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, continua vigente.

Violação do pacto federativo – Delegação de competência legislativa a quem a Constituição Federal não conferiu

Embora a referência a cláusulas pétreas seja normalmente lembrada nas situações de ameaça aos direitos e garantias individuais constantes do art. 5º, é importante lembrar que o inciso I do art. 60, § 4º, da Carta de 1988 dispõe também que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado.

A proteção da forma federativa se dá sobretudo com a distribuição de competências legislativas e materiais à União, aos Estados e Distrito Federal e aos Municípios. Nesse sentido, não podem os entes federados abrir mão de suas prerrogativas constitucionais por mero capricho do Congresso Nacional. Exemplificativamente, é vedado aos municípios descurarem da proteção do meio ambiente, pois a eles compete, conjuntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal, nos termos do art. 23, VI e VII, proteger o meio ambiente, combater a poluição em qualquer de suas formas e preservar as florestas, a fauna e a flora.

Atentemos para este comando constitucional: trata-se de competência material (ou administrativa) comum a todos os entes federados. Vale dizer, os Chefes dos Poderes Executivos Federal, Distrital, Estaduais e Municipais têm o dever constitucional de proteger o meio ambiente.

Sabendo, porém, da intensidade da pressão local do mercado sobre os entes políticos, utilizando o falso argumento de que o Direito Ambiental inibe a criação de empregos, a Constituição de 1988 expressamente excluiu algumas matérias do âmbito da competência legislativa municipal. Com isto, ficam as Câmaras Municipais imunes à pressão do mercado que sempre pretende desregulamentar a atividade econômica (o que vale tanto para o Direito Ambiental como para o Direito do Trabalho, do Consumidor e da Seguridade Social)

Os Municípios podem e devem zelar pela proteção do meio ambiente, mas não podem flexibilizar ou reduzir os parâmetros fixados pelos entes federativos detentores da atribuição constitucional de legislar sobre o tema.

A forma federativa está no próprio nome de nosso país: República Federativa do Brasil. E a Constituição Federal estabelece, em síntese, as seguintes regras: (1) Nenhum ente federativo pode abrir mão de suas competências legislativas e materiais; (2) Nenhuma emenda constitucional (e, evidentemente, nenhuma norma infraconstitucional) tendente a abolir (ou aviltar) a forma federativa poderá tramitar no Congresso Nacional); (3) Ressalvadas as hipóteses de competência privativa, os entes federativos podem elevar o patamar legislativo assegurador das garantias individuais e coletivas à vida, à saúde, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à educação, à cultura etc.

Nesse sentido, retornando ao tema em foco, isto é, à delegação aos Municípios, partes mais frágeis no embate entre a defesa do interesse público e a sanha do mercado imobiliário, a delegação de competência legislativa sobre temas de Direito Ambiental, com a consequente retirada da concorrente da União, Estados e Distrito Federal constitui evidente afronta à forma federativa.

Violação do pacto federativo II – Usurpação de competência do Legislador Estadual

Há ainda um segundo aspecto a ser observado: não existem, no ordenamento constitucional vigente, rios de domínio particular ou de domínio municipal. Mesmo aqueles cuja nascente e foz situam-se dentro do mesmo perímetro do município constituem bens dos Estados.

O Art. 26, inciso I, da Constituição Federal estabelece expressamente que se incluem entre os bens dos Estados as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes (…).

Aliás, o art. 31 do Código de Águas, na parte recepcionada pela Constituição de 1988, deixa bem claro que pertencem aos Estados os terrenos reservados às margens das correntes e lagos navegáveis, se por algum título, não forem do domínio federal (omissis).

Assim sendo, até mesmo pelo prisma patrimonial imobiliário, a nova lei federal está maculada pelo vício da inconstitucionalidade, pois, revogada a proteção federal das margens dos rios nas cidades, à Assembleia Legislativa dos Estados Federados, e somente a elas, compete definir sua destinação.

Trata-se, aqui, de mais uma evidente violação do princípio federativo, já que o Congresso Nacional conferiu para os municípios (ou deveríamos dizer mais claramente, ao mercado imobiliário) a atribuição de dar a destinação que achasse mais adequada a bens de domínio estadual.

Poderíamos ainda elencar muitas outras inconstitucionalidades presentes nesse verdadeiro presente de Ano Novo que o Congresso Nacional e o Presidente da República deram aos aceleracionistas e à banda do mercado imobiliário menos preocupada com a vida e à saúde dos brasileiros. Limito-me aqui a apontar estas afrontas a cláusula pétrea, que seriam igualmente válidas mesmo se não estivéssemos tratando de questões ambientais e sanitárias.

*Guilherme Purvin é escritor e professor de direito ambiental.

Fonte: O Eco