Opinião

Desmonte da legislação ambiental e as enchentes na Bahia e em Minas Gerais

*Eduardo Luís Ruppenthal, **Eliege Fante

Deputados permitem que municípios regulem os limites das Áreas de Preservação Permanente, no meio urbano, desconsiderando a importância das APP’s, a urbanização sem planejamento e à revelia da legislação ambiental.

Na semana em que a Câmara Federal aprovou mais um ataque à legislação ambiental brasileira, através da flexibilização das Áreas de Preservação Permanente (APP’s) e consolidando a supressão de vegetação nativa das margens de rios nas cidades, o sul da Bahia e o norte de Minas Gerais, continuam sofrendo os impactos das enchentes e das inundações de áreas inteiras em vários municípios: desabamentos, deslizamentos de terras e rompimento de duas barragens. Milhares de famílias estão afetadas, aldeias indígenas do povo Pataxó estão isoladas e há dezenas de municípios em situação de emergência. Até o momento, oficialmente, 15 vidas humanas foram perdidas, sendo 11 na Bahia e quatro em Minas.

Com o apoio da bancada ruralista, do centrão (muitos ruralistas também), da bancada que representa a especulação imobiliária, e da forte articulação do governo Bolsonaro, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou em 8 de dezembro de 2021, por 234 votos favoráveis e 136 contrários, o relatório do deputado catarinense Darci de Matos (PSD) sobre o Projeto de Lei 2.510/2019, de autoria de outro deputado, também catarinense, Peninha Mendonça (MDB). O objetivo é consolidar ocupações irregulares e antigas, onde áreas foram desmatadas, com a intenção de ocupar as Áreas de Preservação Permanente (APP), que ainda restam, às margens de rios nas cidades.

As APP’s são essenciais para proteger os solos, a beira de rios e de lagoas, as encostas e os topos de morros, ao proporcionarem estabilidade geológica, e também as nascentes e os cursos d’água. Pois, além de possibilitarem a oferta de água em quantidade e qualidade, facilitam o abastecimento de lençóis freáticos, preservam a paisagem e a biodiversidade porque são habitats de animais, plantas e demais seres vivos, enfim, são corredores de vida e mantêm o fluxo gênico. Ao contribuírem com a manutenção da dinâmica natural dos cursos d’água, evitam o assoreamento, erosões e deslizamentos de terra e, por fim, desastres como os que estamos acompanhando na Bahia e em Minas Gerais, decorrentes, também, da falta de preservação de APP’s.

Primeiro, toda a nossa solidariedade com as famílias, as comunidades e os municípios atingidos pelas enchentes. Segundo, aspiramos que os governos municipais e, principalmente, os estaduais e o federal, auxiliem de forma concreta e rápida para amenizar os impactos socioambientais e econômicos. Terceiro, devemos entender os eventos extremos, as suas causas e o porquê de suas consequências. As enchentes fazem parte do processo da dinâmica dos rios e demais cursos d’água de uma bacia hidrográfica. Em outras palavras: aconteceram, acontecem e vão acontecer. Esse é um dos pontos essenciais para que as beiras de rios, onde se encontram as matas ciliares, sejam consideradas Áreas de Preservação Permanente. A histórica ocupação e urbanização não podem justificar a extinção das APP’s; pelo contrário, tanto os impactos são conhecidos bem como a legislação ambiental geral no Brasil, nas últimas quatro décadas, consolidou-se. Especificamente, desde o Código Florestal Brasileiro de 1965 até a Lei de Proteção da Vegetação Nativa de 2012 (12.651), apesar das flexibilizações, foram mantidas diretrizes importantes para a preservação dessas áreas, como a que determina a variação das faixas de APP’s dos rios, entre 30 e 500 metros, conforme a largura do curso d’água. Assim, quanto mais largo ele for, mais extensa será a APP.

Ao analisarmos a formação do meio urbano, vemos que as enchentes e suas consequências são resultados da ocupação desordenada, tomada como mero fator histórico. Porém, a ampliação e o agravamento deste quadro reflete a urbanização sem planejamento e à revelia da legislação ambiental e dos planos diretores municipais. Reflete, ainda, a falta de uma reforma urbana e a negação do direito à moradia. Consideramos que a aprovação do PL, na Câmara Federal, converge a esse estado de coisas: o vale-tudo nas cidades, isto é, onde tudo vira mercadoria, onde vale desmatar para lotear, onde vale drenar banhados, nascentes, áreas úmidas e várzeas de rios, onde vale canalizar arroios e córregos para permitir a construção, pavimentação e asfaltamento.

Esta problematização não é feita pela mídia hegemônica porque recebe financiamento do agronegócio (“Agro é pop, Agro é Tech, Agro é tudo”) e da especulação imobiliária. A cobertura dos eventos extremos contém sensacionalismo, por meio da exploração de imagens impactantes e do sofrimento de milhares, visando aumentar a audiência. A superficialidade analítica ora culpa os fenômenos meteorológicos, inclusive tornando-os sujeitos da tragédia, como as “Chuvas matam” ou “Chuvas causam mortes”, ora aborda esses eventos climáticos sem relacionar ao aumento da sua frequência e intensidade às mudanças do clima, de origem antrópica e datada a partir do aparecimento do capitalismo. Ao mesmo tempo, responsabiliza as vítimas e os atingidos, pela suposta “opção” ou “escolha” de morar nas chamadas áreas de risco.

Portanto, os eventos extremos não são obra do acaso nem podem ser reduzidos às explicações meteorológicas. A edificação gradativa das causas, além do aumento do volume de chuvas, representa “o anúncio de verdadeiras tragédias”, quando analisamos desde uma perspectiva científica, relacionada ao conhecimento sobre as APP’s e à legislação que já possuímos. Os negacionismos são alimentados pela classe dominante brasileira, que aproveita para lucrar sem limites; por isso o desmonte da legislação ambiental e os ataques aos órgãos ambientais, aos institutos de pesquisa científica e à universidade pública. Essa elite encontra nos “Salles da vida” e Bolsonaro/Guedes, os porta-vozes dessa expressão, materializados, cotidianamente, no meio urbano, através da especulação imobiliária e, no meio rural, através do agronegócio (agentes do capitalismo brasileiro), com suas respectivas bancadas no Congresso Nacional, Legislativos Estaduais e Municipais, representados em vários partidos como MDB, PP, PL, PSDB, PSL, PSD, PSC, PTB, Dem, Novo, Cidadania, Republicanos e Podemos.

Se de um lado, há quem lucre, e muito, com bilhões para poucos, de outro lado, milhares são atingidos. Aliás, é uma questão de classe e, justamente, com a mudança climática aumentando a intensidade e a frequência dos eventos extremos, os grupos sociais mais atingidos acabam sendo aqueles em situação de maior vulnerabilidade. O lucro de poucos, do andar de cima, é uma tragédia para milhões, os de baixo. É necessário questionar a inconstitucionalidade do PL 2510, pelo princípio do não retrocesso ambiental, visto que o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia acordado o entendimento sobre as APP’s em áreas urbanas. No entanto, além da intenção de flexibilizar, há uma disputa política e ideológica para concretizar uma agenda anti-ambiental permanente, abrir espaços para enfraquecer a proteção legal, criar insegurança jurídica, incentivar o desmatamento e a degradação de áreas. Daí a necessidade de unir forças com todas as organizações ambientais, políticas e movimentos sociais para travar essa luta no campo institucional através da ação no STF e, também, no campo político, já que o projeto da classe dominante brasileira é de ilimitada expropriação e exploração da natureza.

As crises ambientais, sociais e econômicas não podem ser compreendidas isoladamente, pois integram o sistema capitalista. O capitalismo é a grande crise; temos que dar um basta! Temos que somar forças para lutas anti-sistêmicas, ou vamos acumular tragédias e inviabilizar a vida por aqui. Não há saídas no capitalismo: um sistema insustentável social e, ambientalmente, um sistema de morte, ou melhor, ecocida, porque está na sua essência não ter limites. Como vivemos em um Planeta limitado, essa contradição que nos foi imposta, necessita ser ultrapassada.

*Eduardo Luís Ruppenthal é biólogo, professor da rede pública estadual, especialista em Meio Ambiente e Biodiversidade (Uergs), mestre em Desenvolvimento Rural (PGDR/Ufrgs), militante do coletivo Alicerce e da Setorial Ecossocialista do PSOL/RS.

**Eliege Fante é jornalista, mestra e doutora em Comunicação e Informação pelo PPGCOM-UFRGS, integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental CNPq-UFRGS, é filiada ao Núcleo de Ecojornalistas do RS e representa a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) na CT LEAMB do COMAM.

Fonte: EcoDebate